A orgia do
capitalismo
Globalizados, sindicatos e empresas devoram os concorrentes
para sobreviver
Os peixes grandes devoram os
pequenos. Nessa fórmula rudimentar parece esgotar-se a lógica
da concorrência capitalista. Tanto o marxismo quanto o
liberalismo viam a concentração de capital como um processo
imanente e inevitável na evolução dos mercados. O marxismo
dizia que, ao final, das batalhas da concorrência surgiriam umas
poucas empresas gigantescas, capazes de controlar quase toda a
vida econômica e ditar, a seu bel-prazer, os preços e os
salários. O passo seguinte e como que "natural" da
evolução econômica consistiria, portanto, em pôr esse capital
altamente concentrado, com sua organização centralizada, sob a
administração pública do Estado.
O liberalismo, com base na mesma análise, concluiu de forma
contrária: o Estado deveria barrar, por meio de intervenções
legais e dispositivos de controle, o processo desenfreado de
concentração, a fim de preservar o mecanismo de concorrência
-de efeitos supostamente salutares e propícios ao bem-estar- e
evitar uma centralização excessiva do poder econômico. A
passagem dos meios de produção para a propriedade estatal e a
ordem burocrática do sistema produtor de mercadorias se
revelaram um desastre histórico. A idéia liberal de um
guardião estatal da livre concorrência, a quem caberia impedir
a formação de megaempresas absolutas no mercado, não foi menos
catastrófica, entretanto, que a experiência do socialismo
estatal.
Por outro lado, os príncipes e monarcas econômicos das grandes
aglomerações de capital, hoje espalhadas pelo mundo, também
não parecem ser os felizardos vencedores que degradaram o
sistema de regulação política a fim de repartir o mundo entre
si, como ocorreu no passado com os representantes das forças
imperiais do Estado. Os "global players" do grande
capital internacional não são os sujeitos, mas o objeto do
próprio movimento vertiginoso de concentração de capital. A
globalização do mercado, a autonomização do sistema
financeiro e a concentração do capital em novas superestruturas
se revelam momentos vinculados e intercambiáveis de mesmo
processo, que há muito se tornou incontrolável.
Com isso, a concentração do capital não avança linearmente,
mas num movimento duplo, contraditório. As empresas se fundem,
mas se observa também um processo de descentralização. Desde o
início do século 20, não só os grandes peixes devoram os
menores, mas, inversamente, e por meio do mesmo desenvolvimento,
outros peixes pequenos são criados.
De fato, à medida que se formam grandes empresas, nasce
simultaneamente um novo tipo de pequena e média empresa, na
forma de companhias de fornecimento e de consertos, serviços
industriais etc. Mas tal etapa do desenvolvimento não se mostra
capaz de superar a concentração secular de capital. Primeiro,
não se trata mais de pequenos produtores autônomos para os
mercados local ou regional, mas de uma produção secundária de
mercadorias, voltada para as superestruturas das empresas e
inteiramente dependente do grande capital. E, segundo, no âmbito
das empresas de fornecimento e de serviços ocorre igualmente um
processo de concentração, do qual surgem novas megaempresas.
Hoje em dia, tanto a economia global quanto a nacional ou a
regional do sistema produtor de mercadorias são dominadas, de
fato, por relativamente poucas superempresas, ao passo que as
firmas abaixo delas tornam-se cada vez mais miseráveis. A crise
da rentabilidade econômica acelerou de forma absurda o
desenvolvimento duplo e contraditório do processo de
concentração capitalista. De um lado, as empresas encolhem por
meio do "outsourcing", a nova palavra mágica: do
serviço de limpeza, passando pela contabilidade até o sistema
de entregas, um número cada vez maior de esferas produtivas é
"transferido", isto é, delegado a empresas formalmente
autônomas.
Mas essa novíssima espécie de "pequenos peixes" não
tem mais nada a ver com a real criação de empresas. Antes, é o
próprio grande capital que desenvolve, de certa forma, órgãos
externos para reduzir os custos e lançar por terra o
"lastro social": não surge, absolutamente, uma nova
empresa produtiva. As mesmas tarefas são realizadas com custos
reduzidos e salários mais baixos, inferiores ao piso da
categoria.
As empresas, além disso, se furtam ao dever legal de recolher a
parcela destinada à previdência social de seus empregados. Os
antigos funcionários de uma empresa, na qualidade de
"autônomos", não raro ganham somente a metade de seu
salário anterior, sob piores condições e com jornadas mais
extensas, arcando sozinhos com o encargo social. Essa forma
perversa de uma autonomia aparente, como é chamado o fenômeno
do "outsourcing" na Europa, expõe ao ridículo a
"nova cultura da responsabilidade e inovação
empresariais" evocada pelo neoliberalismo.
Por outro lado, o estreitamento empresarial das grandes
companhias vai de par com a sua expansão em megaempresas
globais, de dimensões até então inusitadas. Também esse
processo é impelido pela rentabilidade econômica. Quanto mais
se estreita o campo de ação da acumulação e quanto menor a
produção, mais urgente se torna, para a sobrevivência
econômica, a necessidade de estar globalmente presente e elevar
a própria força de capital. A crise alimenta a globalização e
a globalização alimenta a concentração do capital. Até
grandes firmas, de renome internacional, fazem água.
Agora os peixes grandes não devoram somente os pequenos, mas
também os outros peixes grandes. Em uma série de fusões
nacionais e internacionais sem igual na história, o capital
celebra uma orgia do canibalismo.
Assim, as grandes empresas tornam-se cada vez mais delgadas e
maiores. A única megaempresa "vitoriosa" é capaz de
elevar, com fusões e incorporações, o seu faturamento mundial
e a sua força de capital, ao mesmo tempo em que reduz, em todas
as esferas, a sua atividade empresarial. Para o conjunto do
capital social, porém, os dois processos provocam a
autodestruição galopante. No cômputo final, de fato, empregos
e capital são mais aniquilados do que recriados. Uma grande
parte das incorporações, abstraindo o "outsourcing",
só serve para tirar proveito da disparidade de custos, ou seja,
para fechar setores relativamente dispendiosos da empresa e
reabri-los em outras localidades, com encargos tributários e
impostos ecológicos menores e salários mais baixos.
Não é rara a aquisição de outras empresas, dentro ou fora do
país, com o propósito oculto de extingui-las o mais cedo
possível, a fim de livrar-se de um concorrente indesejável. Às
vezes o tiro sai pela culatra, e as duas partes acabam
arruinadas. Mesmo quando as empresas incorporadas continuam a
produzir, a fusão é acompanhada, em geral, do surto de
racionalização na esfera administrativa: empregos são
extintos, setores inteiros da hierarquia são eliminados e
filiais fecham suas portas.
Não por acaso os bancos e as seguradoras estão à frente da
onda de megafusões. Como se sabe, a acumulação cada vez menor
do capital real é compensada por uma turgidez fantástica dos
títulos puramente financeiros. Do mesmo modo que a produção de
bens de investimento e de consumo não é mais do que um hobby
secundário do alucinado capital monetário, assim também a
orientação estratégica no campo de batalha da economia global
das fusões passa do mercado de mercadorias para o mercado
financeiro.
Por isso os grandes bancos se fundem não só mais rapidamente e
em maiores proporções do que outros empreendimentos, mas
também assumem a liderança na concentração do capital como um
todo. A fusão estratégica do capital real é subordinada à
fusão estratégica do capital fictício, pois o rendimento das
aplicações financeiras a curto prazo é maior e mais fácil de
obter que o rendimento de aplicações a longo prazo, destinadas
à produção real.
Sob a égide dos grandes fundos de investimento, esses novos
bancos direcionam todo o processo das fusões não mais segundo
as expectativas dos mercados de mercadorias, mas dos mercados
financeiros. Isso significa que empresas inteiras são
incorporadas sem que se respeitem as perspectivas de sua
atividade real, sendo "exploradas" para elevar o custo
de certas ações e, assim, canalizar o excedente de liquidez
para o moinho dos mercados financeiros, que se fecham sobre si
mesmos. Quem se fundirá com quem é determinado, em última
instância, não pelo "management" das empresas de
produção, segundo seus próprios objetivos, mas pelo
"management" dos bancos e dos fundos de investimento.
Os sindicatos são impotentes contra esse desenvolvimento, pois
não dispõem mais de um objetivo estratégico próprio e sua
crítica social está esgotada. Além de praticamente afastarem
de seu campo de visão o conjunto dos desempregados, eles nada
podem contra o novo fenômeno dos pretensos pequenos empresários
(surgidos com o "outsourcing") na periferia das
megaempresas. Na maioria dos países, como resultado, o número
de seus membros decai drasticamente.
O raio de ação sindical restringe-se cada vez mais ao pessoal
especializado, em via de extinção, de grandes empresas
altamente concentradas e globalizadas. E, assim, não lhes resta
senão imitar em espelho a dupla tendência à autodestruição
de sua contraparte social: a exemplo do grande capital, eles se
tornam cada vez mais delgados e maiores.
De um lado, os sindicatos reduzem o acompanhamento e o
aconselhamento de seus membros. De outro, essas organizações de
tal forma "desbastadas" se fundem, para além das
categorias profissionais, em novas unidades. Beira o ridículo a
maneira como o processo de concentração do capital repete-se na
esfera dos sindicatos: primeiro, os grandes engolem os pequenos,
depois, aqueles se fundem entre si. Paralelamente às
megaempresas e aos megabancos, surgem também os megasindicatos.
Mas isso não é motivo de júbilo, pois esse tipo de
"unidade" sindical não passa de um produto da divisão
social e de um suicídio a prestações.
Aonde nos levará esse processo destrutivo de concentração
econômica e social? De todo modo, ele não poderá
estabilizar-se num determinado nível, uma vez que a dinâmica da
crise é irreversível. A "grande comilança" das
megafusões incontroláveis mostra que a contradição entre a
racionalidade econômica de empresas isoladas e grupos de
interesse, de um lado, e a reprodução do conjunto da sociedade,
de outro, agrava-se ao extremo.
O resultado da concentração não está no fato de um punhado de
organizações capitalistas incorporar a si a humanidade para
administrá-la no interesse de uma acumulação crescente de
capital. Por mais desagradável que fosse uma tal situação, ela
poderia ser tida, de algum modo, como suportável. As ideologias
marxistas e liberais não somente fracassaram, em termos
político-econômicos, quanto à concentração de capital: a sua
análise teórica também só em parte é verdadeira. O processo
de concentração, de fato, é idêntico ao processo de crise. As
grandes empresas só se fundem em unidades cada vez maiores
porque o terreno do capital total torna-se cada dia menor. Por
mais colossais que sejam, as megaempresas revelam-se ínfimas
quando comparadas ao oceano da maioria social, que elas já são
incapazes de integrar.
Publicado em 03/10/97 no caderno
Mais! da Folha de São Paulo
Robert Kurz é sociólogo e
ensaísta alemão, publicou no Brasil, entre outros, ''O Colapso
da Modernização'' e ''A Volta do Potenkim'' (Paz e Terra) e é
co-editor da revista ''Krisis''.
Tradução de José Marcos Macedo